Tuesday, March 03, 2009

A Verdade por trás do Abandono

"- Mãe... ele carrega a bolinha de papel na boca!... e parece não precisar de mais nada do que um pouco de carinho e uma bolinha de papel para ser feliz... Aí ele deita do meu lado e rola no chão de um lado para o outro quando eu fico parado uns instantes, mas sempre me segue aonde quer que eu vá, e ainda por cima dorme numa caixinha... parece um motorzinho fazendo rrrrrr, assim mesmo, às vezes brrrr, assim sem parar..."

E com essas palavras eu me lembrei daquele velho chaveiro, daqueles de corda que no passado eram um barato só porque eram importados, um chaveiro oval que, quando destampado, exibia de dentro de um visorzinho um gatinho branco cutucando com a pata esquerda uma bolinha do papel. A simplicidade de um momento, eternizado num chaveiro de corda que traduz toda a emoção de se ter um bichinho de estimação. Um souvenir até meio triste, de tão simples que é, como as antigas caixas de música que de um jeito ou de outro nos afirmam que nunca precisamos de mais nada.

Tudo começou quando ele veio miando enquanto subia as escadas numa hora de almoço de um dia que eu nunca venho pra casa; pediu colo e escalou minha calça como se a vida dele dependesse disso. Fingi que não era comigo, afinal "é muita responsabilidade ganhar um amigo", mas nessas horas a gente nem se dá conta de que a gente não escolhe um bicho de estimação. A gente acaba sendo escolhido, isso sim. Subiu as escadas atrás de mim, e foi ficando, ficando... Voltei para o trabalho - não sem antes o colocar para fora de casa - e quando as dezoito badaladas mais felizes do dia anunciaram que era hora de voltar para o recanto do lar, sem pestanejar torci de verdade para não ver novamente aquela carismática figura que mais parecia saída de um desenho da Disney, feito um Fígaro inteiro branco, uma pluma felpuda como aquelas desses casamentos manjados, que de fato estava sim a esperar como quem afirma: eu vou ficar, custe o que custar.

- Não, meu amigo branquelo, você tem dono, não tem uma pulga, nem manchas de sarna, está muito bonito para ser um gato sem dono ou de rua (como se isso fosse um problema). Fique aí a esperar o seu dono, que certamente estará em breve a te buscar.

Mas eu não contava com a postura destemida e insistente de quem vem miar justamente embaixo do meu recanto, o qual está atualmente repleto de mudas de plantas. "Quem cuida de plantas, cuida de gatos", pensei.

- Entra, bichano, vamos ver o que podemos fazer por você.

Lhe dei cafunés e carinho, um pouco de diversão, e ração de cachorro fornecida pela vizinha - que, uma pena, não gosta de gatos... e vamos eu e o felino assustado rua afora, bater palmas casa por casa na tentativa de descobrir qual ironia nos colocou frente a frente, justo eu, justo eu...

Muitas tentativas depois, uma vizinha enfim me conta que o branquelo costumava viver num apartamento de frente ao meu - bem que eu suspeitava - e que a dona decerto o viria buscar; fiz minha parte, procurei entre fileiras de desconhecidos e até mesmo entre inimigos declarados um contato com a suposta dona. Em vão. Chamadas sem retorno, ideal despedaçado. Começo a imaginar que é um caso clássico de abandono proposital.

Ou o famoso problema de outra pessoa. Se tornou rotineiro jogar fora o que não te atende mais e fim de papo, sintomas da vida moderna. O velho celular vai para o lixo, o vestido usado uma única vez vai para o lixo, a caixa de sapatos que serviu de lar para o hamster de sua filha também, e se bobear, a sua própria filha vai para o lixo - se não compactuar com o que mamãe sempre quis. A falta de responsabilidade enfim conseguiu romper todas as barreiras restantes.

Atitude infame, que para mim equivale a esquecer a si próprio numa prateleira de supermercado, um supermercado infeliz onde se compra tristeza enlatada disfarçada de um sonho de uma vida melhor, uma vida onde curiosamente o melhor amigo que você poderia arranjar simplesmente não pode fazer parte. Ao diabo com os sonhos dessas pessoas vazias; como alguém pode abandonar à própria sorte um ser vivo que deita de barriga para cima ao enxergar alguém em quem é capaz de confiar? Como alguém pode não enxergar, simplesmente não enxergar, um sorriso torneado por olhos grandes e pupilas sinceras, de quem está só a te esperar...

Abandonado à minha sorte, no fim das contas, e para minha sorte; pois só pode ser sortudo quem enxerga a ironia de inicialmente refutar o bem maior. E depois, quando a gente se reconhece - uma hora a gente sempre se reconhece - a gente assume esse bem como se fizesse parte da nossa vida desde sempre.

Amor no coração nunca foi conveniência. É por essas e outras que eu acabo não tendo tanta pena assim dos animais abandonados por aí. Tenho é pena de quem os abandona, dos que não enxergam no espelho a capacidade de serem um pouco mais mundanos, divinamente mundanos, que não têm sequer a coragem de enxergar que cometem um erro a cada par de meias vestido a cada manhã, que nunca serão adotados por alma nenhuma sequer. Nem escolhidos, nem nada. No supermercado de onde vêm essas pessoas, só se pode escolher entre a conveniência e a vergonha, e ambas custam caro. Amor, que é de graça, até que tem - mas acabou.

1. Não, o gato ainda não tem nome, porque além de eu não saber se é macho ou fêmea (e por isso uso o termo sempre no masculino, por convenção); ainda não sei se ele ficará comigo ou com uma outra pessoa querida, íntima e tão capaz de fornecer um bom lar quanto eu.
2. A ideia do parágrafo final foi orgulhosamente inspirada em um texto do Lester Bangs. Infelizmente ele não se referia à gatos adotados, mas sim à uma coisa tão banal quanto: a morte de Elvis Presley.
3. Experimente ler ouvindo a canção "O Filho que eu Quero Ter", interpretada por Paulinho da Viola;
4. Texto escrito com um gato no colo, enquanto este brincava de morder uma corrente que carrego no pescoço.

2 Comments:

At March 05, 2009 6:54 AM, Blogger Flávia Mello said...

e menino anjo...só quando se é abençoado por ter sido assim escolhido é que nos damos conta que essas criaturinhas tem o maior dos poderes...elas salvam nossas almas!a sua jamis esteve perdida e agora com isso,jamais se perderá..vc leva no rosto marcas literalmente de uma relaçao assim tao proxima,escolheu marcar na pele a mesma coisa, agora vai marcado em seu coraçao um certo gatinho,que mais do que abandonado,e mestre na arte do amor simples, nunca simplista!Hoje vc é meu sao francisco, hj vc é nao só meu anjo, mas de certa forma, de todo animalzinho que já fora vítima de algum coraçao inescrupuloso!obrigada por tanta luz!Amo vc!

 
At March 16, 2009 12:14 PM, Blogger Pedrinho said...

Viva os gatos! Mas ainda acho que o gato deve ser chamado de PINGA! Serve para os dois generos amrculino e feminino!haha

abração bichão, mais um belo texto.

 

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