Wednesday, September 24, 2008

Alguns Dias

É estranho pensar que o fim de uma coisa quase sempre representa o começo de outra. Naquele dia, o pôr do sol deixava evidente: o dia atual estava acabando. E na estrada, do assento do motorista, eu vinha pensando nessa representação quase teatral do sutil anoitecer, de como o crepúsculo - geralmente associado à morte de algo - naquele momento representava o nascimento de dias muito melhores.
Na falta de algo melhor pra fazer (tudo bem, até tínhamos algo melhor pra fazer, mas não que pudesse ser feito na estrada, com o carro em movimento - sim, ainda sou motorista responsável), vínhamos proseando sobre a música do dia anterior. Falamos sobre sermos feijão e arroz, sobre como é possível alguém chorar café enquanto outro alguém chora leite; percebemos que o cansaço se vai quando a gente pensa que por mais que tenhamos ficado até tarde ouvindo falar de poesia, verbo e saudade, a expectativa nos guia e proteje como nos orienta alguém que reside próximo a nós, ainda que do outro lado.
E a noite trouxe dias de luz, dias que foram conquistados a partir de trajetos de terra, de guerra, de cãimbras e muito, mas muito aperto. Que seja, não dá e não há porque ficar parado. Quem tem boca vai à Roma? Não, quem tem alma e pique vai à vida, vai correr, vai estar ao lado dos amigos que se esforçam tanto ou mais do que você para compartilhar alguns momentos longe do mundo artificial que alguns (tá, a maioria) acham que é o mundo verdadeiro.
E sorrisos foram compartilhados, vidas foram trocadas e decisões foram tomadas. Decisões sutis, ou o futuro do mundo, tanto faz; estar lá é estar envolvido com tudo o que há de mais puro e sagrado por aí. Nuvens que rasgam os céus, céu e água que se encontram no fim do horizonte, churrasco improvisado sobre uma grade enferrujada. Estaria o próprio Deus dividindo uma cerveja conosco naqueles momentos?
Mas o sol nasceu e com ele aqueles dias viram seu fim. Amigos partem, despedidas transbordam em lágrimas e para os que viveram, é hora de levantar acampamento. Mais uma vez o ciclo recomeça, a luz que tanto aquece é também a que nos conta que é chegada a hora de partir, e cada qual com seus pensamentos acabam por seguir a maldição da separação.
O que há de errado com o mundo? A gente entra feito idiota, de corpo, alma (e dívidas) numa brincadeira de "gente grande", mesmo sabendo que viver acampado é sempre mais legal. A gente esquece os amigos para lembrar dos problemas, e vive achando que produtivo é aquele que produz mais riquezas. Vai ver é porque saudade, vivência e histórias pra contar não contribuem com o PIB...
Mas se você parar pra pensar, qual é o legado que deixamos quando daqui já não fazemos mais parte? Deixamos por aí plásticos e vidros usados, sonhos frustrados; imóveis rachando, doenças da alma e votos comprados. Seringas usadas, especulação monetária e ahhhh, querem saber? Aquilo que a gente acha que é nosso, é, antes de tudo, do mundo. O que foi produzido no seu dia inteiro de trabalho, quando não houver mais viva alma por aqui, ficará para o mundo. E para ele, eu quero deixar, no mínimo, um eco de boas energias e lembranças.
Com a planta se faz o papel e da terra se produz o tijolo. E da alma se tira a vontade de fazer com que o pretérito-mais-que-perfeito se torne urgentemente um futuro do pretérito, ou melhor dizendo, um futuro do presente. Pela primeira vez na minha vida eu entendi esse raio de gramática. É muito simples: os tempos verbais servem pra que a gente faça hoje, tudo aquilo que a gente já fez de legal no passado e também tudo aquilo que a gente acha que gostaria de fazer no futuro.
E é por essas e outras (tudo culpa da gramática, obviamente), que os poucos dias vividos no mundo de faz-de-conta das pessoas "sérias e responsáveis" foram superados com um truque que não requer prática nem habilidade. Consiste em, basicamente, concentrar todos os esforços em organizar, combinar, planejar um novo acampamento (e posteriormente fazer tudo diferente, claro, porque quem vive de rotina é mulher do padre) e enfim, desfrutar.
O dia amanhecia e alguns desavisados, que simplesmente se esqueceram que de noite a gente dorme, fizeram questão de agir feito despertadores e foi assim que mais uma jornada começou. Uma jornada feita de busca incessante por cerveja, carne e lembranças da noite passada, aquelas mesmas que eventualmente voam por aí e vão fazer parte do coletivo de memórias alheias (as memórias do mundo), que ninguém sem um bom estímulo visual (louvado seja a câmera digital) jamais recordaria.
A próxima aventura estava perigosamente perto. E como de fato nada é por acaso, a não ser aquilo que a gente quer que seja, foi "por acaso" que uma cerveja se abriu enquanto as horas de espera fluíam feito pipa em dia de vento, foi "por acaso" que o comboio mais uma vez seguiu e foi simplesmente "por acaso" que todos resolveram fazer daqueles dias outros dias de falta de estribeiras e alegria em demasia.
Um outro céu, uma outro refúgio; pessoas iguais mas diferentes. O que mudou? A chuva lavou a alma (e as barracas e tudo o mais que podia ser molhado) e o mundo mais uma vez nos ensinou que a vida nos ensina lições, sim, mas às vezes nós mesmos é que somos nossos melhores professores. A gente tem sim que fazer valer o que acreditamos, a gente tem obrigação de não deixar as coisas passarem, de se esforçar pra fazer o melhor para nós mesmos e nossos iguais, seja numa balada, numa aventura, no convívio social ou num almoço improvisado ainda que dez da manhã não seja a melhor hora para se almoçar.
Foi sorte ou o que, que espalhou no ar palavras sábias no momento certo? Uma represa (seria um espelho d'água megalomaníaco?) e as palavras ecoando, música, o sol brilha; o mundo, vasto mundo. Escavou lágrimas em mim, sim, ao que me fez entender, de uma vez por todas, que nada vai mudar meu mundo. Pensamentos divagam como um vento sem rumo dentro de uma caixa de correspondências.
Sacanagem, nem era pra eu me emocionar assim. Independente dos patos selvagens que vieram abençoar o momento como quem diz "olha meu filho, olha pra água e pro mato, escuta o momento, olha pra ti e sabe que isso é você"; independente de ter em minha companhia para esse momento alguém que aquece e ilumina qualquer canto escuro que poder-se-ia ser minha vida (ainda que às vezes seja, ninguém está isento disso); independente de eu ter me sentido o próprio Apanhador no Campo de Centeio; me emocionei só de constatar - mais uma vez - que a vida se mostra pura e generosa com quem não fica apenas sentado esperando a sorte ou esperando a morte. Lógico que a jovialidade conta pacas para um momento desses, assim como uma certa dose de inconformismo. Tenho dó de quem não vive para ver isso, e também de quem para evitar partidas evita também fazer parte de algo assim.
Afinal de contas, o tempo passa (sempre passa) e mais uma vez a hora de partir marcou presença. A bagagem é feita de lembranças, barracas molhadas, histórias e muita esperança. E também perplexidade, claro. É que a gente fica meio perplexo mesmo quando vê que não se precisa de horário pra nada, quando ao voltar para o mundo vil não se quer falar com ninguém que não saiba o que significa estar fora - ainda que apenas por alguns instantes - da rotina ilusória dos contracheques que não compram emoções, tampouco duram até o fim do mês. E quando de volta para cá, nem adianta tentar explicar o que representa uma sequência de fins de semana como esses, então quem esteve lá só responde "é... foi legal..." quando questionado, e tudo bem, porque se suporta a estadia nesse mundo irreal olhando os e-mails a cada 5 minutos só pra saber se alguém mais está se sentindo como você.
É pra se dizer abestalhado com o mundo quando a gente volta para o lado chato da moeda, o lado chato que exige de nós que não sejamos jovens, que não nos emocionemos com o que é imaterial, que determina que façamos coisas que nem sempre temos vontade. Que determina que viver é perda de tempo porque enquanto se vive, não se produz bens consumíveis.
Mas o lastro da vida é poesia, é vivência, é a certeza de que daqui nada se leva a não ser as histórias, e essas histórias só surgem quando estamos distantes do mundo que vê o lastro como sendo feito de barras de ouro. É por isso que a minha fonte da juventude é fazer tudo isso, mas ao contrário. É se emocionar sim, é ir e voltar, é às vezes se recusar a fazer o que não se tem vontade de fazer, é abdicar da carreira em favor de ver, com os próprios olhos, um pôr do sol da estrada e não da perspectiva da tela de um computador. A fonte da juventude, meus caros, é simplesmente viver e acreditar.

4 Comments:

At September 25, 2008 2:16 PM, Blogger Pedrinho said...

Meu Deusssss.........Se é que existe...rs...mas depois dessas palavras volto a acreditar em um mundo imaterial!!!metafísico...hahahhaha

Genial Texto Bichão, como sempre.....

Conseguiu definir fins de semana que fizemos história!!!

Um grande abraço....e vamos sim, nos emocionar com a vida, pois vivê-la!!!

Um grande abraço!

 
At September 25, 2008 3:03 PM, Blogger Flávia Mello said...

irretocável anjo!é bem isso, descreveu com maestria o que são os dias de sonho,de realidade paralela daquela que nós gostamos...devia ser esse aqui o mundo de faz de conta:o mundo de ganancia,de relações fakes,de trocas de favores...mundo de verdade é esse aí q tive a oportunidade de mergulhar contigo:de amizade,de balada,de gente falando a todo mundo e com sinceridade q ama ,de paisagens...isso sim é o mundo que eu quero pra mim, aliás, pra nós!bjo grande, parabéns pra variar...rs

 
At October 06, 2008 4:08 PM, Anonymous Anonymous said...

Não é culpa da gramática!! hehe brincadeira)
Parabéns pelo texto...muita maestria, como sempre! ABRAÇOS

 
At November 05, 2008 11:18 AM, Blogger Andréa Anuario said...

Baita saudade! Estou ouvindo Maria Rita e rindo sozinha...
abraços maninho!

 

Post a Comment

<< Home