Wednesday, March 05, 2008

Fantasia

Aquela senhorinha trabalhava em casa há muitos anos, e já era empregada doméstica desde antes de eu nascer. Vidinha sofrida que ela levava com bom humor, até porque tínhamos uma boa relação, irreverente e tranquila. Mas nunca havíamos tido muito contato nem intimidade, pois ainda hoje não sei muito sobre ela. Naquela manhã escutei-a falando sozinha durante bastante tempo sobre um tal jogo de baralho que era muito divertido de jogar. Perguntei a ela como era esse jogo e ela não sabia bem me dizer, apenas dizia que garantia boas risadas e que se parecia com paciência.
Ela trazia consigo vários recortes de revistas e jornais que, segundo ela, ensinavam direitinho como jogar o tal jogo, apesar de um pequeno detalhe: ela nunca soube ler. Estava atrasado para o serviço mas ela insistiu que eu a ajudasse a jogar. Tomei para mim alguns recortes, e vi que muitos traziam receitas culinárias, dicas para alisar o cabelo, relatos de donas-de-casa. Mas entre eles, havia um que de fato ensinava um jogo de cartas chamado ravens, que nada tinha a ver com paciência e utilizava apenas as cartas de número 7, 8, 9 e 10.
Ensinei-a brevemente as regras do jogo e nos pusemos a jogar, eu a contragosto e ainda mais atrasado, e ela confusa porém entusiasmada. Ela logo reclamou que não estávamos prestando atenção nos "desenhinhos que apareciam nos cantos"; o tal ravens não levava em conta os naipes, mas ela fazia questão de utilizá-los. Quando me dei conta, estávamos sentados no quintal de casa, rindo feito crianças e inventando um jogo cujas regras fazíamos nós, sem nexo nem ordenação lógica, sem nem mesmo ganhar ou perder. Apenas jogando cartas a esmo num jogo inventado e risonho.
Já era muito tarde e eu tinha que ir embora. Despedi-me feliz e ela também. Provavelmente ela deve ter continuado a jogar por horas a fio, já que depois achei as cartas esparramadas no quintal. Naquele dia perdi uma reunião e por pouco não perdi o emprego, mas ganhei algo muito mais valioso, que foi a chance de participar da felicidade de alguém mesmo que só por alguns instantes.
No dia seguinte, aquela senhorinha partiu para sempre. Se despediu desse mundo levando consigo a alegria de um dia onde não foi necessário agir com a razão ou com a lógica. Não houve velório, não fui ao enterro. Continuo sem saber quase nada sobre ela, mas fico feliz por ter tido um momento que me mostrou finalmente que às vezes não se precisa de nada que não seja um sorriso ou alegria latente, pois a felicidade não mora na lógica nem no bom senso; ela mora nas almas de bem, que vêm até nós semeando sorrisos sem que a gente se importe e vão-se daqui deixando lições...

*Adendo: esse texto é ficcional. É o relato de um sonho que eu tive, tal qual ele aconteceu exatamente. No sonho eu fazia o papel de mim mesmo, e não sei quem era a senhorinha. Mas de qualquer maneira, experiência vivida ou experiência sonhada fazem mesmíssimo efeito, portanto considero as lições aprendidas!

3 Comments:

At March 05, 2008 3:49 PM, Blogger Flávia Mello said...

como diria nosso amigo frodo bolseiro ou seu ..:"lá e de volta outra vez"o que se esconde atrás de sorrisos partilhados,lembranças do que não vivemos...enfim...não sei se nossa mente ou nossa alma é que nos traz uma infinidade de impressões que deveriam nos levar a um profundo mergulho em nós mesmos...apenas sei que estamos a todo momento em contato com isso e em geral passamos incólumes...acho fantástico o quanto essas suas impressões são repletas de sensibilidade...é como se fosse projeção mesmo do seu inconsciente...penso que vc deva prestar mais atenção a isso...muito bom anjo..profícuo mesmo...e que venham os bons risos com coisas aparentemente tolas,mas de uma dimensão quase divina...beijos mil!

 
At March 08, 2008 9:23 PM, Blogger Unknown said...

Luiz,
São exatamente 23:12, uma noite de sábado um tanto que reflexiva para mim, e você me vem com essa "estórinha" fictícia, tão doce e simples!?
(Me fazendo cair no choro sentido...)
Acabo de ganhar um presente teu, acabo de perceber que o que eu temia estar se findando, ainda prevalece no coração de algumas pessoas, de alguns raros feito você.
Ente os sonhso e a realidade, fico com os dois, mas de forma diferente, as vezes prefiro ainda dormir e sonhar com o mundo do meu jeito, do que encarar os pobres de alma que me decepcionam...
Porém, os instantes valiosos ainda salvam meus dias, e persisto esperando o encontro de mais raros de essência, feito tu, tatu, rs!
Meu caro raro, nada melhor do que a simplicidade dos atos nos impressionando...
As vezes uma só atitude de afeto nos vale, alegra nosso coração...
Como disse tua menina bonita, que venham os risos, inconstantes, sinceros, sem motivo, mas impressionantes a nossa alma.
És um raro que exala a mais bela essência, Deus lhe abençõe. Tens o dom de resgatar sentimentos com palavras afetuosas e sinceras.

"Há braços apertados".

 
At March 10, 2008 8:42 AM, Blogger Unknown said...

bichão... akele velho lema "a felicidade está nos olhos de quem a vê"..ou mais ou menos isso, mas o importante é sabermos viver sem dosar aquilo q nos faz bem! tem horas q compensa e muito deixar a responsabilidade de lado e passar horas que podem lhe proporcionar momentos... tais momentos passa por desaperebido mtas vezes, so nos demos conta depois q passa.. e pensamos "puts, tal momento foi perfeito.. " esse momento denomina-se em "felicidade"... isso com apenas momentos!Acho a vida "adulta" muito conturbada, cheio de atalhos, tudo isso em busca da perfeição para o nosso bem, digo em um trabalho, faculdade.. mas eskecemos q ser feliz depende somente de nos, seja em um trabalho, faculdade, em um bar tomando coca (todos chapando o globo..rs q eh meu caso)!
aprendi a dar valor em tais coisas, acho q nao eh a toa q ando mais tranquilo em relação a tudo, a nao me fazer mal por pekenas, ou ate mesmo, grandes coisas..
um grande abraço bichao, como sempre seus textos coerentes com mtas filosofias de minha vida...
saudades sempre, faz falta!

 

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