Tuesday, March 18, 2008

Baú Aberto

Sempre gostei daquele desenho animado que se chamava Caverna do Dragão. Não por acaso, ainda penso nos reais motivos pelos quais aquelas crianças persistiam na tentativa de voltar para suas casas, mesmo sabendo que, em todas as vezes que haviam tentado, alguma coisa sempre os fazia voltar atrás.
Lembro particularmente de um episódio, aquele onde havia um baú mágico que era capaz de levá-los de volta; se fosse aberto em determinado horário e em determinado local, o baú formava uma passagem que os levaria para casa. Se fosse aberto em outra posição, de outra forma, uma passagem era aberta para um outro lugar. É claro que, no ápice do episódio, as crianças optam por abrir o baú numa posição que não os levaria para onde mais desejavam, mas ajudaria alguém que, naquele momento, precisava daquilo mais do que eles.
Eles sempre faziam isso. Abriam mão do que lhes interessava para ajudar quem necessitava. Faziam isso porque se doavam, ajudavam sem esperar nada em troca, mesmo que para isso tivessem que adiar seus próprios planos. Mas sempre tentavam de novo, porque sempre havia uma nova chance, e sempre que há uma chance, há esperança.
Depois eu entendi que quem se entrega às escolhas que as situações lhe impõem, decide ao mesmo tempo com a razão e o coração. Quem tem esperança não precisa de atalhos, nem precisa ser desleal ou desconsiderar o que verdadeiramente importa na vida. Basta ter paciência.
Hoje em dia eu imagino que cada um de nós é o "baú mágico" de alguém. Cada um de nós pode trazer esperança e nossas escolhas podem colocar as pessoas que nos cercam mais próximas dos objetivos que esperam atingir. Existe a hora certa e o jeito certo das pessoas atingirem nosso eu mais pessoal, e se formos "abertos" nessas condições seremos capazes de lhes oferecer um mundo novo, um lugar para ser chamado de "casa" por alguém. Não culpo quem abre seus baús da forma errada, mas torço para que compreendam que, "abertas" na hora errada e de maneira errada, pessoas poderão ser absolutamente diferentes do que se espera, agir de maneira inesperada e levar outras pessoas para mundos muito distantes do que se almeja. O que forma nosso caráter não são nossas qualidades, mas sim as atitudes que tomamos a partir delas.

*Mais um texto reciclado que era uma descrição do orkut e veio parar aqui. Perdoem a falta de ineditismo, os poucos que visitam o blog já devem conhecer o texto, mas entretanto nunca é demais relembrar. Em breve entra um texto verdadeiramente inédito...

Wednesday, March 05, 2008

Fantasia

Aquela senhorinha trabalhava em casa há muitos anos, e já era empregada doméstica desde antes de eu nascer. Vidinha sofrida que ela levava com bom humor, até porque tínhamos uma boa relação, irreverente e tranquila. Mas nunca havíamos tido muito contato nem intimidade, pois ainda hoje não sei muito sobre ela. Naquela manhã escutei-a falando sozinha durante bastante tempo sobre um tal jogo de baralho que era muito divertido de jogar. Perguntei a ela como era esse jogo e ela não sabia bem me dizer, apenas dizia que garantia boas risadas e que se parecia com paciência.
Ela trazia consigo vários recortes de revistas e jornais que, segundo ela, ensinavam direitinho como jogar o tal jogo, apesar de um pequeno detalhe: ela nunca soube ler. Estava atrasado para o serviço mas ela insistiu que eu a ajudasse a jogar. Tomei para mim alguns recortes, e vi que muitos traziam receitas culinárias, dicas para alisar o cabelo, relatos de donas-de-casa. Mas entre eles, havia um que de fato ensinava um jogo de cartas chamado ravens, que nada tinha a ver com paciência e utilizava apenas as cartas de número 7, 8, 9 e 10.
Ensinei-a brevemente as regras do jogo e nos pusemos a jogar, eu a contragosto e ainda mais atrasado, e ela confusa porém entusiasmada. Ela logo reclamou que não estávamos prestando atenção nos "desenhinhos que apareciam nos cantos"; o tal ravens não levava em conta os naipes, mas ela fazia questão de utilizá-los. Quando me dei conta, estávamos sentados no quintal de casa, rindo feito crianças e inventando um jogo cujas regras fazíamos nós, sem nexo nem ordenação lógica, sem nem mesmo ganhar ou perder. Apenas jogando cartas a esmo num jogo inventado e risonho.
Já era muito tarde e eu tinha que ir embora. Despedi-me feliz e ela também. Provavelmente ela deve ter continuado a jogar por horas a fio, já que depois achei as cartas esparramadas no quintal. Naquele dia perdi uma reunião e por pouco não perdi o emprego, mas ganhei algo muito mais valioso, que foi a chance de participar da felicidade de alguém mesmo que só por alguns instantes.
No dia seguinte, aquela senhorinha partiu para sempre. Se despediu desse mundo levando consigo a alegria de um dia onde não foi necessário agir com a razão ou com a lógica. Não houve velório, não fui ao enterro. Continuo sem saber quase nada sobre ela, mas fico feliz por ter tido um momento que me mostrou finalmente que às vezes não se precisa de nada que não seja um sorriso ou alegria latente, pois a felicidade não mora na lógica nem no bom senso; ela mora nas almas de bem, que vêm até nós semeando sorrisos sem que a gente se importe e vão-se daqui deixando lições...

*Adendo: esse texto é ficcional. É o relato de um sonho que eu tive, tal qual ele aconteceu exatamente. No sonho eu fazia o papel de mim mesmo, e não sei quem era a senhorinha. Mas de qualquer maneira, experiência vivida ou experiência sonhada fazem mesmíssimo efeito, portanto considero as lições aprendidas!