Realidade Fictícia ou Ficção Real
Ela vinha passando correndo, pisando até duro; eu caminhava no sentido contrário, molhado de chuva e aéreo como só após dias difíceis se pode ficar. Na rodoviária lotada o olhar apressado encontrou o olhar cabisbaixo e por instantes o momento pareceu congelar. Seguimos cada qual seu caminho, não sem antes que eu me virasse para quem sabe mirar pela última vez aquele quase sorriso que parecia surgir. E por cima do próprio ombro ela olhava também. "Vou voltar", pensei. "Não, não vou". Segui adiante.Mais que depressa comprei um cartão telefônico para quem sabe suavizar a espera. Telefono e aguardo ansioso a resposta:
- A ligação está péssima.
- Só queria dizer que te adoro...
As palavras saem fluentes e os créditos chegam ao fim. Retiro o cartão do aparelho e só então vejo que trazia uma oferta estampada de um lado: compre o cartão telefônico e convide alguém para um cineminha. "Droga, perdi a chance de fazer um convite". Não foi dessa vez, mas guardo o cartão esgotado para uma proposta futura.
Ao meu redor só o que vejo são reencontros e despedidas, lágrimas e soluços de alegria e tristeza, de saudade em faces singelas com bochechas rosadas e pesar em carrancas rugosas e desacorçoadas. E é por isso que sempre gostei de rodoviárias. Ninguém está lá porque quer, e mesmo assim tudo parece tão vivo. Emoções transbordam e transpõem a barreira do orgulho muito mais do que sob a proteção das paredes das casas. E mesmo assim, nem sempre se entende que, para a paixão, a distância é mais produtiva do que a proximidade.
Me sentei encostado à lixeira e me pus a pensar na minha situação atual: vou e venho quando bem quero, cultivo o que necessita ser cultivado, não moro em lugar nenhum, mas moro em todo lugar; minha casa, minha rodoviária, meu planeta Terra.
Percebo que enquanto alguns novos vínculos sociais se formam à velocidade da luz, outros se esfarelam feito pão velho. Tento entender esses últimos. Uma intimidade se perdeu e com ela a vontade de trocar impressões. Mais dolorido que isso é sentir que a cumplicidade sucumbe entre duas pessoas quando as crendisses são mais influentes do que anos de convivência.
Lá vem o ônibus e é hora de parar de agir feito louco. Adentro o veículo e encosto a cabeça no travesseiro ainda molhado, e é claro, não durmo. Meus sentimentos me traem e minha auto-defesa se aguça. Só consigo pensar nas diferentes distâncias e suas consequências. Penso nas distâncias físicas, como a que está prestes a suceder assim que o ônibus partir, e nas emocionais, que são absolutamente mais doloridas pois são gigantescas mesmo que se divida com alguém um mesmo recinto. E nesse caso me refiro a alguém que, assim como eu, deixou para trás tudo aquilo que nos juntou.
Finalmente adormeço e a viagem segue tranquila. O veículo transpõe o portal que separa os momentos vividos dos momentos vindouros e acordo da minha viagem interna, a que inadvertidamente acabo fazendo e que me ilumina e reforça a certeza de que a vida é mesmo feita de escolhas e decisões, de que estamos sempre em construção, de que nada é eterno a não ser a mudança e de que tudo depende da maneira como encaramos nosso modo de agir e os nossos porquês. Cabe a nós decidir sob nossos preceitos o que queremos ser para nós mesmos; viver em translado, consertar velhos vínculos, agir por impulso, reforçar novos laços. Ser imprevisível e ter dinamismo para saber as respostas de questões que ainda não nos perguntaram, mas vão perguntar. E o pior, essas respostas ninguém nos ensinou. Parece loucura. E é, mas eu não me importo. Porque somos, enfim, um bando de loucos fodidos. Mas acima de tudo somos todos loucos apaixonados.