Friday, June 19, 2009

Autofagia

Os dedos iam sendo engolidos um a um, lentamente, para dentro das minhas próprias mãos. As meninges dos dedos passavam com dificuldade pelo pequeno vão de cartilagem existente - causando certo desconforto - enquanto a mão ia se dilatando para enfim dar lugar aos corpos estranhos que se acomodavam onde não deveria haver mais nada além dos ossos cujos prolongamentos formavam os dedos.
Primeiro o indicador, depois o anelar, sem ordem específica; o mais dolorido era o dedão. Com a outra mão eu resgatava dolorosamente um a um dos dedos que iam sumindo no interior dessa massa disforme resultante do que outrora fora uma mão, agora inchada feito baiacu ou até mesmo um pão molhado.
Até que o processo de invertia. Ao fim de um resgate, era a vez d'outra mão sucumbir ao súbito e inexplicável fenômeno de auto-fagocitose; e com frenezi a mão resgatada corria em socorro de cada um dos demais dedos; a essa altura estes eram engolidos em ondas cada vez mais regulares e frequentes.
A mão que ajudava começava a sofrer igual processo. As juntas já não respondiam aos movimentos. Sucessivamente. O tempo era curto, não havia mais nada a fazer. Simultaneamente os dedos daqui eram curtos demais para estancar a inclusão dos que antes eram os dedos dali. Duas bolhas feito pedaços de carne, estufadas por segmentos de ossos, e não havia nada que se podia fazer, a não ser esperar até que o corpo todo se tornasse uma obra só: enlameada de nervos, fibras e restolhos, com a alma em choque e um anel no chão.

1 Comments:

At June 26, 2009 2:46 PM, Blogger Flávia Mello said...

kafka gostaria muito de ler isso, talvez desse outros rumos a sua metamorfose...
complicado de digerir esse sonho, neh ,menino anjo??notou se suas asas também eram engolidas?

 

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