Friday, March 27, 2009

Imagina a Ação

A gente fica adulto e invariavelmente a vida nos força a se esquecer de ser um pouco como criança. Lembra quando você era criança, e tudo ao redor só dependia da sua imaginação para ser qualquer coisa que você quisesse que fosse? Uma folha de árvore seca virava uma balsa na valsa da enxurrada de sujeira que escorria pela sarjeta do vizinho, um pedaço de madeira com tampinhas de garrafa pregadas bem ao lado virava um carro de fórmula 1 de última geração e até mesmo o vestido antigo da tia solteirona podia virar uma bandeira pirata, se corretamente afixada numa caixa de tomates emprestada da quitanda da esquina. As crianças são piratas, astronautas ou bombeiros, porque dentro dos seus corações mora a imaginação.
E agora? Agora quando adultos exigimos as famosas provas cabais de que as coisas precisam ser mais realistas, concretas, palpáveis. Uma poça d'água é apenas algo que molha nossos sapatos, um buraco no asfalto não é uma cratera remanescente do pouso de um disco voador, é só algo que pode estragar nossos pneus, um pedaço de madeira é um vetor de contaminação por doenças impensáveis, a enxurrada do vizinho só suja nossa calçada e caixas de tomate não passam de restolho. De tanto enxergar o mundo assim, nosso trabalho, que acaba ocupando por volta de uns dois terços do nosso tempo útil, se torna cada vez mais boçal e tedioso.
Vejam as tarefas operacionais; tem dias que você tem 201 formulários para você xerocar. Duzentoseum formulários! Nossa, quantos! Ou então você precisa copiar 2000 nomes de um cadastro e colar em outro arquivo. Trabalho é assim, às vezes é cheio de tarefas operacionais. às vezes é preciso copiar uma planilha, digitar e redigitar 32938234 algarismos em sequência, pois se você não fizer isto o imposto do produto será calculado errado, a conta do cliente poderá passar batido, as fórmulas estarão incorretas, ou o que quer que seja. É chato. É muito chato.
É por isso que até hoje eu penso meio como criança: são 4732903 algarismos divididos em 32183 linhas e 1312 colunas? Ótimo, faço e refaço isso com prazer pois dentro de mim imagino que se eu não digitar os números (a "senha secreta", na verdade), os soldados da força especial de ataque não poderão invadir o bunker imperial despótico rival. Digitar formulários? É comigo mesmo: imagino que sou eu a encaminhar cada um dos formulários aos astronautas correspondentes, cada um num planeta mais distante que o outro. Xerocar documentos então nem se fala; leio trechos e trechos de cada um deles, seria eu capaz de, sem pudor algum, copiar uma frase de cada um deles e juntar todos num texto sem pé nem cabeça, feito uma sopa de letrinhas incoerente, só para gargalhar da falta de sentido que isso faz. Tomar bronca no trabalho é outra coisa especial; que espião super-secreto não esqueceu provas de espionagem em território inimigo?
Tudo na vida é assim. Um pouco de imaginação não faz mal a ninguém. Temos que ter paixão pelas coisas, enxergar o vizinho queimando o lixo ao invés de contribuir com a coleta seletiva e imaginar que o fogo é o resultado de uma mágica de um bruxo mau, temos que olhar os pássaros voando e imaginar que na verdade fogem das gaiolas da realidade, olhar a enxurrada que suja nossa sarjeta e imaginar que aquilo são só as lágrimas de um gigante que mora na esquina e que teve seu amor rejeitado pela anã do castelo, mesmo sabendo que é só água suja e mal-tratada. Temos que amar nosso trabalho, mesmo sendo a realidade chata demais. Temos que fazer o que deve ser feito, com paixão, com segurança, com coragem e sem reclamar demais das coisas, independente de onde queremos estar no amanhã. O amanhã pode ser e até será o hoje melhorado, mas se o hoje não for bom, o amanhã será um inferno.

Wednesday, March 11, 2009

Doutor Destino

A surpresa é algo com o que nem sempre se sabe lidar. Ela está aí, rondando, pairando sobre nós feito uma ternura fria mas presencial, como algo elusivo que faz parte de você sem que ao menos você queira; um crescendo de emoções cuja maior finalidade, de fato, é acabar com a rotina (quem me dera) ou deixar como legado a impressão de que o novo é que é o bom, de que o presente traz problemas e de que certas coisas perdem a validade.

Nem sempre escolhemos passar pelas coisas que eventualmente passamos. Mas também não nos é garantido escolher não passar pelas situações que se apresentam (e onde está meu advogado nessas horas?). Sendo assim, quem escolhe enfrentar o presente, o passado e o futuro mesmo com suas surpresas todas, implica em se ver coagido a passar até mesmo pelo que não escolheu.

O problema? É que muitas vezes a maneira de agir diz mais sobre o que podemos nos tornar (ou voltar a ser) do que sobre o que somos de verdade. Ser ou estar, eis a questão (pois "não ser" está fora de cogitação - com o perdão da paráfrase, Sr. Hamlet). Às vezes, a virtude da vida é que a gente se torne aquilo que nós mesmos juramos combater. Pelo menos, no fim de tudo, ganhar ou perder faz pouca diferença.

Tuesday, March 03, 2009

A Verdade por trás do Abandono

"- Mãe... ele carrega a bolinha de papel na boca!... e parece não precisar de mais nada do que um pouco de carinho e uma bolinha de papel para ser feliz... Aí ele deita do meu lado e rola no chão de um lado para o outro quando eu fico parado uns instantes, mas sempre me segue aonde quer que eu vá, e ainda por cima dorme numa caixinha... parece um motorzinho fazendo rrrrrr, assim mesmo, às vezes brrrr, assim sem parar..."

E com essas palavras eu me lembrei daquele velho chaveiro, daqueles de corda que no passado eram um barato só porque eram importados, um chaveiro oval que, quando destampado, exibia de dentro de um visorzinho um gatinho branco cutucando com a pata esquerda uma bolinha do papel. A simplicidade de um momento, eternizado num chaveiro de corda que traduz toda a emoção de se ter um bichinho de estimação. Um souvenir até meio triste, de tão simples que é, como as antigas caixas de música que de um jeito ou de outro nos afirmam que nunca precisamos de mais nada.

Tudo começou quando ele veio miando enquanto subia as escadas numa hora de almoço de um dia que eu nunca venho pra casa; pediu colo e escalou minha calça como se a vida dele dependesse disso. Fingi que não era comigo, afinal "é muita responsabilidade ganhar um amigo", mas nessas horas a gente nem se dá conta de que a gente não escolhe um bicho de estimação. A gente acaba sendo escolhido, isso sim. Subiu as escadas atrás de mim, e foi ficando, ficando... Voltei para o trabalho - não sem antes o colocar para fora de casa - e quando as dezoito badaladas mais felizes do dia anunciaram que era hora de voltar para o recanto do lar, sem pestanejar torci de verdade para não ver novamente aquela carismática figura que mais parecia saída de um desenho da Disney, feito um Fígaro inteiro branco, uma pluma felpuda como aquelas desses casamentos manjados, que de fato estava sim a esperar como quem afirma: eu vou ficar, custe o que custar.

- Não, meu amigo branquelo, você tem dono, não tem uma pulga, nem manchas de sarna, está muito bonito para ser um gato sem dono ou de rua (como se isso fosse um problema). Fique aí a esperar o seu dono, que certamente estará em breve a te buscar.

Mas eu não contava com a postura destemida e insistente de quem vem miar justamente embaixo do meu recanto, o qual está atualmente repleto de mudas de plantas. "Quem cuida de plantas, cuida de gatos", pensei.

- Entra, bichano, vamos ver o que podemos fazer por você.

Lhe dei cafunés e carinho, um pouco de diversão, e ração de cachorro fornecida pela vizinha - que, uma pena, não gosta de gatos... e vamos eu e o felino assustado rua afora, bater palmas casa por casa na tentativa de descobrir qual ironia nos colocou frente a frente, justo eu, justo eu...

Muitas tentativas depois, uma vizinha enfim me conta que o branquelo costumava viver num apartamento de frente ao meu - bem que eu suspeitava - e que a dona decerto o viria buscar; fiz minha parte, procurei entre fileiras de desconhecidos e até mesmo entre inimigos declarados um contato com a suposta dona. Em vão. Chamadas sem retorno, ideal despedaçado. Começo a imaginar que é um caso clássico de abandono proposital.

Ou o famoso problema de outra pessoa. Se tornou rotineiro jogar fora o que não te atende mais e fim de papo, sintomas da vida moderna. O velho celular vai para o lixo, o vestido usado uma única vez vai para o lixo, a caixa de sapatos que serviu de lar para o hamster de sua filha também, e se bobear, a sua própria filha vai para o lixo - se não compactuar com o que mamãe sempre quis. A falta de responsabilidade enfim conseguiu romper todas as barreiras restantes.

Atitude infame, que para mim equivale a esquecer a si próprio numa prateleira de supermercado, um supermercado infeliz onde se compra tristeza enlatada disfarçada de um sonho de uma vida melhor, uma vida onde curiosamente o melhor amigo que você poderia arranjar simplesmente não pode fazer parte. Ao diabo com os sonhos dessas pessoas vazias; como alguém pode abandonar à própria sorte um ser vivo que deita de barriga para cima ao enxergar alguém em quem é capaz de confiar? Como alguém pode não enxergar, simplesmente não enxergar, um sorriso torneado por olhos grandes e pupilas sinceras, de quem está só a te esperar...

Abandonado à minha sorte, no fim das contas, e para minha sorte; pois só pode ser sortudo quem enxerga a ironia de inicialmente refutar o bem maior. E depois, quando a gente se reconhece - uma hora a gente sempre se reconhece - a gente assume esse bem como se fizesse parte da nossa vida desde sempre.

Amor no coração nunca foi conveniência. É por essas e outras que eu acabo não tendo tanta pena assim dos animais abandonados por aí. Tenho é pena de quem os abandona, dos que não enxergam no espelho a capacidade de serem um pouco mais mundanos, divinamente mundanos, que não têm sequer a coragem de enxergar que cometem um erro a cada par de meias vestido a cada manhã, que nunca serão adotados por alma nenhuma sequer. Nem escolhidos, nem nada. No supermercado de onde vêm essas pessoas, só se pode escolher entre a conveniência e a vergonha, e ambas custam caro. Amor, que é de graça, até que tem - mas acabou.

1. Não, o gato ainda não tem nome, porque além de eu não saber se é macho ou fêmea (e por isso uso o termo sempre no masculino, por convenção); ainda não sei se ele ficará comigo ou com uma outra pessoa querida, íntima e tão capaz de fornecer um bom lar quanto eu.
2. A ideia do parágrafo final foi orgulhosamente inspirada em um texto do Lester Bangs. Infelizmente ele não se referia à gatos adotados, mas sim à uma coisa tão banal quanto: a morte de Elvis Presley.
3. Experimente ler ouvindo a canção "O Filho que eu Quero Ter", interpretada por Paulinho da Viola;
4. Texto escrito com um gato no colo, enquanto este brincava de morder uma corrente que carrego no pescoço.