Wednesday, November 28, 2007

Asilo dos Sonhos

O que acontece com as suas fantasias de infância quando você simplesmente deixa de imaginá-las? O que acontece com os seus sonhos e seus ideais perdidos ou não realizados? Às vezes a vida é bruta e a realidade fala mais alto, derrubando fantasias e ideais à machadadas feito pinheiros que caem para servir de madeira.
Gosto de imaginar que cada fantasia perdida encontra seu lar numa espécie de asilo; uma colcha de retalhos onde sonhos não realizados se costuram formando um emaranhado imaginário, onde cabem lado a lado o amor não realizado no colegial, o velho sonho de se tornar astronauta, a expectativa pelo brinquedo que não chegou no Natal, a saudade do amigo que nunca voltou... ou a história que preservou seu final inalterado, por maior que fosse o esforço em mudá-lo.
Surgiu-me esses tempos uma lembrança caduca, há muito esquecida no pretérito. Nos meus tempos de criança existia uma coleção de histórias e fábulas infantis gravadas em vinil; bastava colocar para tocar para ouvir a história com fundo musical e efeitos sonoros. Gostava particularmente do disco do Soldadinho de Chumbo. Contava a história do brinquedo que, diferente dos outros soldadinhos, não tinha uma perna. O soldado sem perna se apaixona pela bailarina de papel que mora no castelo, mas ele acredita que, devido a sua condição inferior, a bailarina nunca poderia o amar. o soldadinho eventualmente se perde, é engolido por um peixe, e eis que por ironia do destino é encontrado por uma cozinheira na barriga do peixe e devolvido ao seu antigo dono, que o limpa e o coloca junto aos demais brinquedos. Sem mais nem menos, a certa altura o garoto atira o soldadinho quebrado na lareira, não se sabe se por influência de um outro brinquedo invejoso ou por vontade própria, mas o que acontece é que, enquanto o soldadinho de chumbo derretia no calor, a bailarina de papel voa ao seu encontro e queima ao lado do soldado. Esse conto, além de ser um dos poucos que não tem final feliz, é considerado por muitos uma das fábulas mais tristes de todos os tempos.
A capa do disco exibia o desenho da bailarina ao lado do soldado sem uma perna, e eu, do alto de meus sete anos, decidi que se desenhasse na capa do disco uma perna nova para o soldadinho, quando tornasse a ouvir o disco a história teria mudado, e o brinquedo teria então duas pernas como todos os outros bonecos, podendo então quem sabe ser feliz com sua bailarina. É claro que a história não mudou, por mais que eu me esforçasse em desenhar uma perna melhor e mais fiel a cada audição. Essa fantasia reside ao lado de tantas outras no asilo dos sonhos.
Ao lado dessa fantasia, deve residir no asilo uma outra protagonizada por um grande amigo. Esse amigo havia acabado de ler O Pequeno Príncipe, e inspirado pela passagem inicial do livro, chegou na faculdade, reproduziu a célebre gravura da jibóia que engole um elefante inteiro e que dá a tônica do conflito realidade versus imaginação que permeia o livro todo, e apresentou à sua colega ao lado, perguntando então: "- O que é isso?" e a colega, taxativa, responde: "- Isto é um chapéu!", no que ele retruca dizendo "Ora, você é adulta demais!".
Claro, é preciso coragem para protagonizar uma cena dessas. É preciso ainda mais coragem para acreditar que algumas histórias poderiam - e deveriam - mudar.
Não sei bem em qual momento do ciclo da vida humana as pessoas começam a necessitar de explicações demais, provas irrefutáveis demais ou realidade demais. À imaginação fica destinado o segundo lugar, o lugar dos sonhadores desenfreados, dos idealistas de plantão, o lugar dos resignados que acham que a vida é mais do que uma revista Exame na mão e um discurso vazio (porém retórico) na ponta da língua.
A realidade é repleta de pessoas que nutrem uma falsa necessidade de parecer sérios, ocupados e sisudos, como se representassem carrancas de moralidade prontas a te ignorar; pessoas que fazem questão de explorar a futilidade, ostentar status e se fazer de importantes, que adotam posturas protecionistas e defensivas e que acham que fantasiar não produz riqueza nem ajuda a economia.
Como um sussurro na relva do conformismo, ainda assim grito para que, os que puderem, se libertem das amarras do status quo, queimem suas revistas Exame e se ocupem em escutar o mundo. Grito para que se ocupem em fantasiar com soldadinhos de chumbo, jibóias e elefantes, se ocupem em se interessar de verdade pelo sonho dos outros, que façam o impossível se tornar possível, ainda que numa realidade particular. Como um efeito-borboleta, numa atitude caótica que derruba morais como peças de dominó, onde uma a uma as falsas verdades supremas se decompõe feito queijo podre e vão pelo ralo num piscar de olhos, escorrem para os rios sujos, cujos poluentes são as crenças fajutas que foram abandonadas pelos que conseguiram se livrar do ouro dos tolos.
Atiremos às brasas o que não nos serve, e o que não nos serve é a paralisia cerebral de nossos governantes, o sonho médio da vidinha regrada, a armadilha da hipocrisia, a farsa do dinheiro e crédito fáceis, o amparo do consumismo... e que esta fantasia, se não se realizar, ao menos encontre asilo ao lado de astronautas, príncipes, amores não correspondidos e soldadinhos de chumbo.

* Dedico esse texto a todos os meus amigos idealistas e sonhadores que recusam as falsas verdades do mundo, a todos os que se emocionam com as lembranças de infância, que visitam o blog e que investem tempo para ler o que escrevo, e em especial ao amigo Pedro Orlandini, protagonista da história do Pequeno Príncipe. Obrigado pela inspiração!
Lembrei de detalhar a minha história com o Soldadinho de Chumbo esses dias, quando notei uma certa paridade com a música Tiny Dancer, do Elton John, e que está na trilha do filme Almost Famous. Recomendo as leituras, assim como o filme e a música!

Tuesday, November 20, 2007

As Cercas da Holanda

Há uma certa dignidade em não saber ao certo o que se quer. Se comprometer com o nada pode parecer um lento suicídio para alguns, mas deixar algumas possibilidades em aberto requer auto-controle, paciência e um comprometimento com o descomprometimento quase heróico. Há entretanto a necessidade de seguir um rumo. Os sonhos são a motivação do bicho-homem, e carecem de ser necessariamente inatingíveis. É quase como imaginar que no final de cada arco-íris existe mesmo um pote de ouro. Ora, não seria mesmo uma referência circular, o fato de que por não haver pote de ouro algum, a própria busca pelo inalcançável se torna o pote de ouro?
Uma grande amiga minha sonha com o dia em que pintará cercas na Holanda. É o sonho mais plácido e singelo que já tive a honra de tomar conhecimento. Há uma doçura e uma sabedoria em sonhar com algo tão pouco indulgente, que acredito que nesse momento foi cunhada a metáfora primordial para todo e qualquer sonho que possamos vir a ter; a função de uma cerca sempre é impor limites, e são justamente esses limites que são o sinônimo da maturidade. Talvez o fato de termos um sonho tão cristalizado iniba desvios temporários de rota, pois o caminho rumo ao sonho se torna tão delimitado por cercas invisíveis que sugerem que num dado momento podemos estar fazendo coisas que não nos levarão ao dito sonho.
Muitas vezes nos esquecemos de que a cada passo dado é necessário que o nosso sonho se distancie o mesmo tanto. É como caminhar rumo a um castelo que enxergamos nas nuvens; se um dia chegássemos até ele, veríamos com os próprios olhos que ele nunca existiu. Muitas vezes temos tanta urgência de realização que nos esquecemos que a chegada a um destino não é tão importante, mas o caminho percorrido sempre o é.
As cercas da Holanda, metaforicamente, podem fazer parecer que uma atividade desenvolvida no presente pode não contribuir com o futuro, pois pouco ou nada têm a ver com o desejo intrínseco de se fazer algo diferente. Mas deve-se acreditar que enquanto não pudermos nos deslocar, devemos aproveitar nossa estadia. Daí a dignidade em não saber ao certo o que se quer. Há quem acredite que para quem não sabe onde quer chegar, qualquer caminho está errado. Mas penso que, para quem não sabe onde quer chegar, qualquer caminho está é certo. Caminhos sempre permeados por pequenos sonhos, que quando atingidos se desfazem saborosamente em experiências prazerosas, enquanto percorremos a estrada da insatisfação constante que faz com que cada dia seja um novo dia a sonhar com as cercas na Holanda; cabe, enquanto isso, acreditar que o pote de ouro existe sim, mas que enquanto não formos atrás dele, podemos aproveitar esse momento para, aí sim, fazer algo realmente diferente.

*Escrevi esse texto sob a inspiração dos filmes Alta fidelidade e Vanilla Sky, da música We´re Here (Guillemots), e principalmente sob a inspiração de uma conversa fabulosa com uma amiga muito querida e especial, que é a Ju. Boa sorte com as cercas! Quanto a mim, vale mencionar que o meu sonho atual é aparecer em uma foto que seja mais ou menos como a da capa do disco The Freewheelin´ Bob Dylan... até que se torne outro!

Sunday, November 18, 2007

O Milagre das Baixas Expectativas

Você acorda de mau humor após a terceira noite mal dormida. O calor é insuportável e tudo parece triste. Aquele telefonema que você tanto esperava não chega e talvez nunca chegará... Você passa dias esperando notícias por e-mail e tudo o que consegue fazer é passar os fins de dia sozinho em casa, entre o computador e a televisão. Sua saúde não está lá essas coisas e nem ir para o bar tomar uma cerveja parece te animar. Aí você desce do carro depois de uma aula de natação mal feita e um cachorro que você nunca viu na vida vem te fazer festa, pula na sua perna e te agrada com alegria... Você vê sua vizinha, que não tem uma perna, indo com sua muleta para sua caminhada matinal e ela te escancara um sorriso e diz:

- Bom dia! Nossa, mas que dia lindo!

E você chega no trabalho, já com meio sorriso no rosto, escuta aquela música que você adora, e finalmente pensa:

A Vida é assim mesmo. Nem tudo é uma maravilha sempre, nem tudo é como a gente espera, e o que faz a vida ter graça é justamente isso; curtir momentos, ser feliz com baixas expectativas, entender que deveríamos fazer mais coisas sem esperar nada em troca, entender que a vida só depende da gente, que sempre é tempo de se arrepender e de pedir perdão, e que a felicidade só depende dos olhos de quem a vê... um bom dia é só um dia que, pelo nosso esforço, nós tornamos bom. É só isso e nada mais...

Thursday, November 08, 2007

Vazio

"O ser humano é mesmo uma espécie interessante... uma mistura peculiar. São capazes de sonhos tão lindos, e pesadelos tão horríveis. Sentem-se tão perdidos, tão isolados, tão sozinhos... mas não estão sós. Em todas as nossas buscas, a única coisa que torna o vazio suportável... são os outros."
(Inspirado em trecho do filme Contato).

Descontamos nossos medos no consumismo. Afinal, temos o álibi perfeito: "somos apenas humanos". Humanos são falíveis, passíveis de erro. "tudo se resolve com um simples perdão". O medo da solidão nos torna possessivos, ciumentos, egoístas. Intolerantes. Subjulgamos os adversários intelectuais, os que pensam diferente, as minorias, a partir de nossas crenças mais intrínsecas... e o que nos resta é um grande maniqueísmo. Capaz de transformar outros seres humanos, semelhantes a nós, em heróis ou vilões a partir dos nossos julgamentos, repertórios e jogos de influência. Os interesses acima de tudo, é o que dizem. Somos todos "opções" num grande supermercado. Escolhemos o que melhor nos serve, pagamos no caixa, e agora o que "compramos" nos pertence. Nos esquecemos de desfrutar as companhias e experiências que nos são oferecidas. Afinal, "ser feliz agora" é mais importante. Pressa, urgência, não vai dar tempo, socorro. Para o ser humano, não basta saber que alguém existe e gosta de você. Preferimos nos sentir a sós e isolados de um mundo maior para ficar ao lado de quem "é nosso", mas nunca preferimos encarar que nunca estamos a sós quando contamos apenas conosco.

Em todas as minhas buscas, o que torna o vazio suportável é saber que nada precisa ser meu. Não preciso mais de fotos para me lembrar de fatos, não preciso de bens de consumo para ser o que sou, não preciso de desculpas esfarrapadas para escancarar a verdade, doa a quem doer, não preciso me desculpar por errar, sofrer, magoar e ser magoado. Não preciso de vínculos e contratos para saber o que cada ser humano representa para mim. Eu não gosto de ser humano, é mais difícil do que qualquer coisa...

"Este universo está repleto de criaturas que agem sem a menor compreensão do que as leva a fazer o que fazem". Eu, ao menos, tento compreender.

*Esse é um texto que foi escrito há algum tempo a partir de influências diversas, como filmes (o supracitado Contato), música (a banda Modest Mouse), cultura pop (Star Wars) e experiências pessoais (verídicas, vale o adendo). Resolvi publicar também no blog, influenciado por duas amigas que recentemente elogiaram um outro texto meu. Obrigado pela confiança! Acho que o texto (despretensioso, como todos os outros, era apenas uma descrição do famoso Orkut) continua válido, e principalmente atual, apesar de lhe faltar ineditismo.