Thursday, May 07, 2009

O Dia que Sonhei com Dálmatas

Meus amigos de infância voltaram para mim. Eles voltaram para mim! E eu nunca quis contar para ninguém, a história de quando acordei cercado por dálmatas. Foi tão bonita, tão triste, a história de quando meus amigos de infância voltaram para mim, sim, voltaram pra mim, como na forma de dálmatas!
Todos filhotes, a lamber o meu rosto, a puxar meus cadarços, rolando comigo na grama do chão. E eu ria! Ria pelo encontro maroto, e chorava, em virtude da beleza da cena e da saudade de séculos. Todos filhotes... não acredito, mas como? Filhotes!
Mas desde já todos tinham o seu próprio nome: Médico, Surfista, Empresário, Advogado; esses eram os nomes de alguns deles. Cada qual com suas negras manchas na pele, no couro, manchas das muitas vidas vividas, pois assim é um dálmata. Carrega consigo a alva alma que todo ser vivo tem de nascença, carimbada pelas negras manchas de vida.
Eles devem ter ido embora. Eles não podem ir embora! Acordo aos prantos. Onde estão, aqueles seres queridos? Quero de volta os afagos, as alegres brincadeiras, as mordidas, quero a despretensão de nunca acordar, de não retornar à vívida luz do dia que, de vívida, muitas vezes nunca tem nada.
Durmo de novo como quem quer novamente sonhar com seus dálmatas. E, em sono profundo, eu os vi. Não mais correndo em volta de mim, mas deitados, cansados. Sem novo tempo para se tornarem novas coisas. Hoje estão velhos, curvados, menores ainda do que quando filhotes. Os meus filhotes com nomes tão sérios hoje em dia já não são mais malhados. São cinzas. O branco e o preto finalmente se misturaram. Assim como o certo e o errado, o sim e o não, o amor... e as vezes a dor. A distinção, hoje em dia, é dádiva para poucos.
Ainda assim meus filhotes crescidos ensaiam brincadeiras; às vezes rolamos no chão, e entre pulos e mordiscadas acontece de sermos de novo todos filhotes ávidos a brincar... e enfim, de novo, eu acordo.
Acordo mergulhado em saudosas lembranças. Acordo, entretanto, cercado de pequenos cãezinhos - novamente filhotes! Mas não são os meus, não mesmo, não são os meus dálmatas. Estes que estão bem aqui são inteiramente brancos. Então debruço-me em lágrimas. Lágrimas de saudade, que atingem o solo com tamanho sentimento, mas que vez ou outra alcançam também os pequeninos cães, que ainda festejam ao meu redor, tornando-os mais e mais malhados a cada gota que cai. As lágrimas se esgotam e, por enfim, entendo: a metamorfose está completa.
Hoje eu sei que a memória não se apaga enquanto está acesa a vela da amizade, e que as manchas dos dálmatas são criadas pelas lágrimas que neles caem, derramadas por saudades dos amigos.