Wednesday, May 07, 2008

Recomeço

A única coisa necessária para se entender a vida é um saco de feijões. Não desses comprados em supermercado, selecionados eletronicamente e embalados em escala industrial, mas sim um saco daqueles feijões pesados à granel, recolhidos às conchadas de sacos de juta e com impurezas suficientes para que nos lembremos, ao fazer uma boa seleção manual, que a vida é feita de escolhas.
Nos meus tempos de criança um dos meus passatempos prediletos era "escolher feijão" em companhia do meu pai. Bastava esparramar um punhado em uma mesa de fundo claro e se pôr a catar os grãos carunchados, os pedregulhos, as palhas e demais impurezas tão desnecessárias para um bom feijão quanto a presença das insatisfações, frustrações e rêmoras sociais são desnecessárias para a vida humana.
Sempre que eu separava os bons feijões dos objetos obviamente ruins, apareciam vez ou outra uns elementos com os quais eu não sabia bem como lidar. Uma ervilha, um feijão preto no meio dos carioquinhas, ou ainda um vermelho no meio dos feijões brancos. Esses eu carinhosamente chamava de alienígenas, e meu pai dizia para eu fazer com eles o que eu bem entendesse. Que saudade que me dá de quando eu sorrateiramente misturava de novo o estranho alienígena em meio aos feijões tão separadinhos, uniformizados, iguaizinhos entre si! Minha diversão depois era procurar os grãos estranhos no meu prato do jantar, uma pena que nunca os encontrava...
Acontece que o hoje em dia o mundo não sabe mais escolher feijões. Os homens se acostumaram com as respostas sempre prontas, entregues de bandeja, sem nenhum feijãozinho de outra cor para indiciar que aquela resposta pode não ser a certa. Os homens se acostumaram com os feijões selecionados eletronicamente e, pior, com o feio costume de afastar as diferenças, julgando-as como incapazes de contribuir com o que já se sabe de antemão. O homem já não sabe mais o que lhe serve, e o resultado disso é aparente. As pessoas deixam de lado a diversão para ocupar a mente apenas com as coisas desnecessárias. E depois se dizem insatisfeitas e nunca sabem o porquê! Fazem escolhas influenciadas pelo senso comum e culpam Deus e o mundo todo por serem tão infelizes e azaradas. A depressão e o stress derrubam hoje em dia mais indivíduos que as armas de fogo, e os filhos dessa geração crescerão sempre sem seus pais, pois os pais de hoje estão sempre muito ocupados com a produtividade do escritório ou com suas próprias depressões para enfim ensinar suas proles a escolher feijão.
Entender a vida é entender que fazer escolhas implica em errar às vezes. Morder uma pedra no feijão não é legal, o que dirá descobrir que o que se escolheu para a própria vida é uma barca furada. Isso é muito pior. Pensar para agir é importante, mas às vezes é ainda mais importante que alguém de fora (como é de fora um feijão alienígena) esteja presente para fornecer um contraponto. Cabe olhar para a vida como se olha para um punhado de feijões. E então, para a surpresa geral, quem sabe as pessoas perceberão que estão segregando em demasia as diferenças. Que estão criteriosamente descartando os grãos bons e escolhendo para suas vidas apenas os carunchados, as palhas e pedregulhos, enquanto a chance de ser feliz dia após dia se vai para sempre.
O mundo não está pronto e tampouco um dia estará. E essa também não é uma resposta pronta, assim como desejá-las não é a solução. Obviamente, brincar de escolher feijão não basta para resolver os problemas de uma vida. Mas é um recomeço.